Chão do Apa



Primeiro I

QUANDO OS CANHÕES EMUDECEM

“Ave, Maria,
llena éres de gracia ...”

Os lábios, ressecados pela sede, da índia guarani estremecem ao pronunciar as palavras da oração. Ela evita beber das águas que encontram no curso da jornada, pois podem estar contaminadas. O inimigo tem jogado cadáveres nas nascentes para envenenar os mananciais e provocar a peste maligna.
Respingos de orvalho caem das folhas quando o ombro esguio esbarra nos galhos, e escorrem como lágrimas pelos seus cabelos, negros como as penas do guyrahũ , que lhe caem soltos pelos quadris. Seus olhos cinza azulados, lastreados pelo azul do céu, mantêm-se fixos lá adiante, onde a comitiva carrega, como numa procissão, o estandarte com a bandeira tricolor: o vermelho do sangue derramado pela pátria, o branco da pureza de um povo indômito e o azul do infinito que lhes garante a glória de Deus.
Seu corpo esbelto, preservado pelo chá do tarumã, moreno, da cor da casca do urucum, já estivera em melhor estado. Agora mal se sustenta sobre os pés descalços e feridos devido a longa jornada através das matas, dos brejos, dos campos cobertos pela macega, e atravessando riachos forrados de afiados pedregulhos. Até a exuberância dos seios fartos parece ter murchado, e apenas o respirar ofegante expõe, através dos andrajos, a sua pele outrora acetinada, mas agora castigada pelo sol e pelas intempéries. Sua cabeça lateja com a dor cruciante da fome, e o cansaço adormece seus joelhos; no entanto suas mãos não largam a estranha sacola que carrega, ora nos ombros, ora de arrasto pelo chão das picadas.
O estranho alforje, manufaturado do papo do nhandu-guasú , curtida na secura do sol e no orvalho das madrugadas, resiste ao peso que carrega: peças de ouro e de prata cravejadas de pedras preciosas. É todo o patrimônio que lhe restou da sua nobre família aristocrática.
Seus lábios murmuram:

“Madre de Diós,
ruega por nosotros, pecadores ...”

Amanhece o dia 6 de fevereiro de 1.870.
A neblina cobre a mata densa como um manto protetor aos fugitivos, e pelas copas mais altas das árvores a luz do sol mal se infiltra timidamente. Os passarinhos se agitam em rebuliço saudando com gorjeios o espreguiçar da natureza. Os bugios roncam escondidos pela folhagem, e vez ou outra o estralo de gravetos que se quebram denuncia a correria atropelada do mboreví .
Quanto aos dias dessa dura jornada, já perdeu a memória. Cruzaram rios, córregos, vararam taquarais, e os pés descalços marcavam de sangue o ritmo e o rumo da caminhada. A marcha forçada deixou muitos mortos à beira dos trilheiros. Os feridos, nos atropelos, morriam aos poucos, vítimas da gangrena ou pela perda excessiva de sangue. Morriam sob as bênçãos da extrema-unção, com um sorriso compungido nos lábios ressecados, satisfeitos por entregarem suas vidas pela pátria amada. O mau cheiro das feridas lembra constantemente a ronda da morte, e as toscas cruzes, à beira da estrada, demarcam sua fúnebre trajetória.

“Ahora y en la hora de nuestra muerte.
Amén...”

É o trágico teatro do final da Guerra do Paraguai.
A guerra sangrenta, hedionda, sem piedade, sem compaixão, sem convenção. Por questões de fronteira no sul do Mato Grosso, para barrar a suposta supremacia do Paraguai na América do Sul, e principalmente no interesse político e financeiro da Inglaterra. Coligada com o império brasileiro através das sinistras articulações do Barão de Mauá, declarou-se a guerra à nação guarani. Forças imperialistas, por sua vez, coligadas com as mesquinhas forças de Mitre, da Argentina, interessada em manter o controle no Mar del Plata, e com o Uruguai, mera carta do baralho no jogo dos poderosos, sob o compromisso de um documento nefasto assinado na calada da noite, denominada de a Tríplice Aliança, declararam o extermínio de um povo.
A campanha da Guerra do Paraguai já dura seis anos sangrentos, e o seu final se aproxima. O que sobrou das tropas do comandante paraguaio, Solano Lopez, não passa de uma maltrapilha caravana destroçada pelas intempéries e pelos obuses dos canhões inimigos. A comitiva se arrasta apenas sob o vigor do patriotismo. Mas, os inimigos não vão sossegar enquanto não entregarem ao Senado brasileiro, em bandeja de prata, a cabeça do ditador paraguaio que ousou fomentar o crescimento do país sem as amarras dos países mais poderosos do mundo.
— Josefa! Josefa!
A mulher beija rapidamente a pequena cruz de madeira que carrega ao pescoço, e já seus olhos cor de chumbo, acostumados com os horrores da guerra, procuram quem a chama. Uma menina adolescente tenta reanimar uma anciã que desmaiou sob o peso dos anos e da fadiga. Josefa se aproxima, toma a anciã pelos pulsos e levanta-a com dificuldade, pois aquele corpo idoso já não se firma, parece um saco vazio. Com a ajuda da menina arrasta a sacola e a velha, enlaçando-a pela cintura. Josefa Sanchez de há muito tempo conhece a velha vovó da pequena Asuncena. E agora, que fora nomeada sargenta residenta era também responsável pelos seus cuidados. Tinha sob suas ordens sete mulheres, entre velhas e crianças desnutridas. Ela comanda aquele pequeno grupo esquálido de esfarrapadas.
Com uma das mãos puxa e arrasta a sacola com as peças de ouro, e com a outra sustenta a anciã. E assim se arrastam até o barranco do córrego Sangüina. A água límpida desce pela garganta e refresca o braseiro da sede e fome que lhe corrói as entranhas. Josefa, sentada ali num cupinzeiro, olha suas companheiras de infortúnios, e sente imensa pena daquelas mães, pois seus rebentos não sobreviverão com certeza. O objetivo dos aliados é o de dar como repasto aos urubus até o último feto no ventre da mãe, e isso vinha se cumprindo ao pé da letra. Desde que a comitiva saiu de Ascurra batendo em retirada, sabedores do massacre ocorrido em Acosta-Ñu, todos os dias falecem feridos, velhos e crianças.
A comitiva pontilhada pelos uniformes vermelhos sobe, em suave aclive, pela picada do Chirigüelo, após transpor o caudaloso Ypanê-Guassú. Canhões abandonados tiveram que ser jogados nas águas escuras e profundas do rio, para que não caíssem nas mãos dos inimigos, e assim também aliviavam a carga daquele sofrido carreto. Nessa ocasião, um oficial de nome Germán Sanchez, sobrinho do idoso Vice-Presidente Francisco Sanchez Corvalán, morreu tragicamente, pois uma das cordas que puxava o canhão em direção do barranco prendeu-se a sua perna arrastando-o para o fundo do rio barrento. O Tenente Germán Sanchez fora o marido de Josefa, e, no curto espaço de tempo que estiveram casados, ela não lhe gerou filho.
Já não tinham muito do que comer. Alimentavam-se do que a natureza lhes oferecia: abóbora, bacuri, bocajá, pinha, pindó, laranja, raízes, brotos etc. Quando aparecia a ocasião abatiam alguma caça; a carne de macaco novo principalmente era muito apreciada. Quando não tinham nada para amenizar a fome ferviam pedaços de couro e preparavam assim uma insípida sopa.
Mas, o que aconteceu afinal com o Paraguai? Antes viviam num país próspero, onde o povo era tratado com respeito e dignidade. Economicamente o Paraguai, através da siderurgia de Yvycuí, despontava com uma forte liderança sul-americana, comprometendo os grandes interesses estrangeiros. Josefa Sanchez não conseguia entender direito os atropelos da guerra, perdera o marido, e os seus velhos pais, remanescentes do reduto missionário jesuítico de Santo Ignácio, faleceram de tristeza e de desgosto ao verem seu torrão querido e sagrado encharcado pelo sangue dos seus próprios filhos.
Num gesto brusco ela apanha do chão a sacola de papo de avestruz, e, boleando o sapicuá sobre a cabeça várias vezes, arremessa-o para dentro da mata densa, ribanceira abaixo, por onde corre a sanga do corgo. A estranha sacola vai quebrando gravetos, batendo em galhos secos. Uma juriti bate estrepitosamente as asas e, traçando curvas bruscas no ar, voa, fugindo apressada do local. Ela suspira profundamente inconformada, mas aliviada daquele peso.
A mocinha Asuncena deixa a avó repousando na sombra de um arbusto e aproximando-se a enlaça pela cintura, e assim permanecem por um tempo, unidas pelo mesmo trágico destino.
O toque estridente e prolongado do clarim anuncia o descanso e a suspensão das atividades da marcha. Somente os homens teriam que transpor os dois canhões e as cinco carretas além da sanga; e essa tarefa durou até ao escurecer; mais uma estação daquele calvário.
Os últimos raios de sol tocam o rosto de Solano, montado no cavalo todo enlameado. Nem o mais leve sorriso, nem o menor sinal de desgosto ou medo, apenas a rigidez granítica da determinação de quem colocou a pátria acima de tudo, menos do seu Deus. Pensativo, fica parado no alto da lombada, vigiando silencioso.
Os oficiais desmontam, e as juntas de bois são liberadas da canga e se põem a pastar pelo meio dos assa-peixes. Do acampamento em Capivary, na margem do rio Ypanê-Guasú, despachara o General Caballero e o seu Estado-Maior para inspecionar o tortuoso e perigoso trilheiro do Chirigüelo até o alto do Cerro Corá, à procura de um local adequado e seguro para aquele “exército” montar acampamento à espera talvez do desfecho. O General Caballero cumpriu a contento sua missão.
Foram estacionadas patrulhas ao longo da trilha para isolar Cerro Corá. Uma guarda foi colocada para fechar a trilha que vem das planuras do rio Aquidabán, outra no passo d’água do Arroyo Guasú, e a terceira patrulha permaneceu guardando o acesso pela Tranquerita, assim denominada a carreteira que vem da Villa Concepción, às margens do Rio Paraguai.
Apesar de todos esses cuidados, o comandante sabe que o confronto com as forças aliadas será inevitável. Seus olhos, frios como a lâmina de boa têmpera, não denuncia nenhum receio, mas o coração de patriota chora o extermínio do seu povo. Lentamente toca o cavalo e retorna sobre a trilha marcada na grama como grossas veias na pele da terra. Apeia junto à carreta que transporta madame Lynch, sua ruiva amada, e chama o filho, Coronel Juan Francisco Lopez, mais conhecido como Panchito, e lhe ordena que seja carneado o gado vacum encontrado perto da aguada. Uma rés, quem sabe, foragida de alguma fazenda.
Os canhões são posicionados junto às árvores e de maneira estratégica, de modo a poderem abrir fogo ao menor indício da aproximação da tropa do General Correia da Câmara, comandado de Gastão de Orleans, o taciturno Conde D’Eu.


Kekito, na Rua Jatayty-Corá,
em Bella Vista (PY)

Antiga Rua Barão do Amambay
no centro de Bela Vista (MS)

Antigo Passo da Canoa