O MENINO E O PASSARINHO
Kekito era um menino pobre que vivia num povoado de uma
região distante, cercada por um rio de águas cristalinas e por uma mataria sem fim. Teria uns cinco anos e sua cabeça vivia povoada por personagens da
mata, bichos, lendas e sonhos. Na casa de taipa e coberta de sapé, vivia com os pais e irmãs, em companhia do Roni, um enorme cão lavrador, e de Míchi-Ráça,
um gato pardo que morria de medo do barulho farfalhante do pelego de montar em cavalo.
Sua vida consistia em perambular pelos caminhos no fundo do
quintal, cortado por um córrego de águas cinzas. Nele jogava farelo para os
peixinhos e quando chovia muito, quando o riacho engrossava, pescava bagre nas
águas sujas com o anzol, feito de arame, que mais parecia de brinquedo. Na sombra dos imensos
pés de lima, se sentia num castelo onde ele era o rei. E a frutinha do paraíso
era seu petardo nas inocentes incursões contra os grandes perigos que rondavam-lhe o imaginário.
Certo dia, Kekito viu uma revoada de chupins que pousou
numa grande árvore próxima aos fundos do quintal. Outros meninos corriam em
perseguição das centenas de passarinhos, atirando com suas fundas. Curioso, e
excitado com a aventura, correu também para a árvore. Mas, no meio do caminho,
a revoada alçou voo e como uma nuvem escura se perdeu entre as copas
distantes da floresta. Aproximando-se do imenso pé de jatobá, percebeu que um
pequeno passarinho preto tinha ficado no chão, machucado na asa que fora pela
perseguição. Com muito cuidado, pegou o animalzinho no colo e levou-o para
casa. O chupinzinho, indefeso, deixou-se conduzir pois sentia que estava em
boas e inocentes mãos.
Muitos dias se passaram até que Negrinho, nome com que fora
batizado, se recuperou do ferimento. Aos poucos foi se tornando um grande
companheiro de Kekito. Empoleirado no seu ombro, onde quer que o menino
fosse, ele ia junto, quietinho. Tornaram-se inseparáveis. Comia o farelo do
arroz na mão do seu salvador e até banho tomava à beira do córrego. Dormia numa
caixa fechada de papelão, ao lado da cabeceira do amigo, com medo dos
predadores. Previdente, Kekito fez alguns buracos na caixa para que o
amiguinho não morresse asfixiado.
Numa tarde tranquila, depois do almoço, o menino se deitou
na rede armada à sombra de mangueira e ali adormeceu. Negrinho ficou enroscado
entre o seu ombro e camuflado no preto dos cabelos. O sono durou o tempo de um
pesadelo, em que o menino se viu lutando contra um monstro sanguinário. Acordou
sobressaltado, e, ao perceber, espalhados pelo chão, penas ensanguentadas do amiguinho, deu-se conta da tragédia. Nem bem as lágrimas puderam nublar-lhe a visão, ele correu, pegou o pelego e cobriu com ele o Míchi-Ráça.
O gato comilão arrotou uma pena, e de susto morreu.
O VELHO E A ÁRVORE
Naquele longínquo 1978,
Natanael chegou com a família na cidade.
Sempre morara na roça, e o
sonho dos filhos era estudar na escola. Estimulado por Rosa, sua mulher, que
labutava nas lides domésticas de sol a sol, achou que seria muito bom que
fossem morar na cidade. Aquela, que já ouviu o patrão, dono da Fazenda
Prateada, falar dos confortos e da tal da tecnologia que melhorava a cada dia a
vida das pessoas. Fez um acerto pelos tempos de campeiro, juntou as economias,
e se mandou rumo à nova vida. Já na hora da saída, de repente, teve um impulso;
ia levar alguma coisa de lembrança daquele lugar em que moraram tantos anos.
Olhou para o terreiro e ali estava um enorme pé de tarumã. Com a agilidade que
lhe dava os trinta anos, trepou num dos galhos e lhe cortou um pequeno ramo;
encheu um plástico de água e colocou a ponta cortada dentro da água. E, tocaram
viajem, no caminhão que contratou para levar a mudança. Tralhas que
balançavam nas curvas da estrada batida de terra, onde o sol inclemente era
amenizado apenas pela sombra esparsa das árvores. Lembrava como se fosse hoje,
o dia em que chegou, na fazenda. Viera de carona, recomendado por um amigo. Na
época, o tempo todo viajou nas sombras das árvores, ouvindo o gorjeio dos
passarinhos. Agora, era uma tristeza; tudo limpo pelo trator, para fazer pasto
ou lavoura. Uma ou outra árvore, à beira da estrada, ainda resistia, mas até
quando? Não importa, ele estava indo embora daquela região que fora ficando triste
e vazio com o tempo.
Seis horas, e chegaram ao lugar
de destino.
Era um bairro novo, na periferia
da cidade. Poucas casas, algumas bem humildes, ponteavam no meio do
capinzal. Ruas estreitas recém abertas pela patrola. Ele ficara sabendo de que
ali, procurando seo Manoel das Ribas, ia conseguir negócio de morada. Pergunta
aqui e ali, descobriu onde ele morava. O sujeito era um gordo bonachão, cheio
de prosa e sorrisos, e logo fizeram negócio. O cunhado do seo Manoel havia
começado a construir uma edícula num dos terrenos, mas, por conta de doença
grave de machucadura, teve que parar a obra e foi morar em casa de parente,
mais perto do hospital público. A construção inacabada estava à venda; uma
pechincha. Natanel ficou satisfeito, e logo tomou posse do seu canto. Vitória e
João Paulo, os filhos, ajudavam como podiam na arrumação. Dona Rosa foi logo se
virar com água para preparar a boia e lavar as roupas. Descobriu que, na rua,
já existia a tal da rede de distribuição, e que, no quintal, havia um
cavalete com torneira. E assim se passaram os primeiros dias, na arrumação.
Quanto ao futuro, Natanael não se preocupava muito, pois era bastante animado
para topar qualquer serviço, seja de pedreiro a entregador.
No terceiro dia, ao perceber como
a frente da casa era limpa de sombra, lembrou da muda de tarumã que trouxera.
Foi na hora, cavou um bom buraco, afofou a terra no fundo, e plantou o raminho,
ainda umedecido, com bastante cuidado, pois que planta precisa de amor para
crescer. Todos os dias, pela manhã e pelo anoitecer, ele pegava um baldinho de
lata e ia molhar o pezinho de árvore que começava a vicejar.
Vinte anos se passaram.
João Paulo se formou em letras, e
Vitória abriu um salão de cabeleira. Na rua asfaltada, cheia de casas novas, vendas
e lanchonetes, o movimento de carro e motos é contínuo. Um sobrado altivo ainda
mantém nos fundos a antiga edícula, mas agora o quintal tem pés de abacate,
manga, acerola e limão, e na frente um jardim cheio de flores e plantas, com um
banco rústico na sombra de uma gigantesca árvore, na calçada. Todo mundo se
admira com a árvore e todos querem lhe curtir a sombra. Ali brinca a criançada
das vizinhas, ali estacionam os carros, ali se sente um suave perfume das
flores e frutinhas do tarumã.
Seo Natanael ficou também marcado
pela passagem do tempo. Muito trabalho, muitas vezes encarando as intempéries;
esforço em demasia, sua saúde foi minando e a pele encarquilhando. Envelheceu.
Não se tornou um inútil, mas diminuiu muito o seu vigor, e a energia não era
mais a mesma de quando chegou. Mas, ele tinha a sua Rosa, que cuidava dele com
muito carinho e dedicação. Ela também envelhecera, mas continuava com aquela
beleza rústica das mulheres criadas no campo.
Aquele dia amanheceu quente logo
nas primeiras horas. O clima enlouqueceu, ele sempre dizia, pois já se amanhece
suando. Almoçou, sesteou, era um domingo tranqüilo. Pelas quatro, levantou, foi
preparar um tererê. A Rosa havia ido com a filha no salão, pois aproveitavam a
folga para fazer alguma arrumação.
O filho tinha saído com a
namorada.
Ninguém em casa, a não ser ele. O
tempo quente forma, aos poucos, nuvens carregadas que aos poucos se tornam
ameaçadoras. Sentado no banco rústico à sombra do pé de tarumã, toma o tererê e
relembra os tempos passados. Saudade da Fazenda Prateada, e dos primeiros
tempos naquele bairro, que acabou sendo denominado Estrela Verá. Uma dor lhe
aperta o peito, e que, sem perceber, vai se estendendo em direção ao braço esquerdo.
Um trovão ao longe ronca grosso em meio ao vento que começa a fustigar o
casario. No horizonte uma tarja avermelhada aponta o poeirão que se levanta nos
campos de lavoura. Um clarão, e a guampa de tererê cai-lhe da mão. Sente o chão
tremer, e tudo escurece a seus olhos. O velho Natanael jaz caído rente ao
banco, enquanto as primeiras gotas estralam no asfalto da rua.
Vozes confusas, uma luz difusa,
ele retoma aos poucos a consciência. Está deitado no sofá e a Rosa lhe passa
álcool pelo peito e nas extremidades. Ela, muito assustada, lhe relata que um raio
havia caído na grande árvore, e que ofendeu um galho que tombou sobre a rua. E
que este galho, como um braço protetor, o havia salvo da centelha. Sentia-se
exaurido, fraco e sonolento. Antes de mergulhar num sono reparador, ainda
conseguiu se ver, trepando na árvore e lhe cortando um pequenino galho.
A muda que lhe salvou a vida
tantos anos depois.
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